quarta-feira, 27 de agosto de 2014

De acordo

Não é porque eu posso sentir o teu cheiro.
Não é porque eu consigo te ouvir.
Não é porque eu te vejo.
Nem é porque te beijo.

Enquanto dura,
tem valor incalculável o meu sonho.

É porque o teu cheiro me vem.
A tua voz é inconfundível.
Você sempre aparece.
E corresponde ao beijo.

Só posso te tocar
porque você se faz real.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Escolha

Olhar para os dois lados não ajuda
na hora de atravessar na conversa
Ser a situação ou a oposição
é só um jeito de se vender a competição

O que mata o cérebro morto é a revolução
Plantar a ideia faz escola, faz educação

Entre uma linha e outra
os espaços são preenchidos
Entre uma pessoa e outra
as cabeças têm estímulos

Vamos trocar a pessoa que passa
a lábia demagoga neste que é
um mundo ferrado, pela pessoa
que passa a vida toda esmagada,
ainda que de punho cerrado

Fazer a revolução não é o perfeito
É o novo

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Vaidade: vai entender!

Elas se travestem de super mulheres -
pois mulheres já são - e arrastam olhares
em organza e meias arrastão
tão difíceis de entender.

Elas se mascaram de rímel
ou remelam os olhos com uma máscara
que é capaz de fazer de tudo,
inclusive se desfazer.

Elas se camuflam de almíscares
e alfazemas em jardins de regos e virilhas,
desde sempre de notas perfumadas
com o seu natural buquê.

Elas se equilibram pra lá de belas
em plataformas politicamente incorretas,
tal Luís XV que num salto suicida 
só queria aparecer.

Elas, que amaciam mil cremes,
desenrolam tantas escovas,
modelam espelhos com caras e bocas,
fazem de tudo pra deixarem de ser.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Especialista em nada

Alguns, da cabeça aos pés,
são inteiramente quadris.
Alguns se resumem
a punhos cerrados.
Alguns são o que digerem
através do estômago.
Alguns são, de verdade, 
tudo o que dizem com o olhar.
Eu, que penso tanto,
penso que sou todo lugar.

Especialista em nada.

Me meto em furadas
com os meus quadris.
Cerro os punhos
mais do que deveria.
Nem sempre consigo digerir
o que alguém cuspiu.
O meu olhar pode ser honesto,
se não me escapa o canto do olho.

Minha humanidade é vária.
Sou especialista em nada.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Goticamente falando

Vulto, não conte comigo;
eu também sou mortal.
Sentado bem ao lado do bem,
eu, bem ao lado do mal.

Se a intoxicação for por mel,
parece um jeito doce de morrer.
Essa vida que não é no céu,
gosto de terra, lento o padecer.

Longo, o dia sem sentido;
finita, a vida na contramão.
Até que uma luz é avistada,
farol, rodeado de escuridão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Waldrausch

O rumor da floresta é silêncio incessante.
Um grilo é apenas uma sílaba.
Graveto quebrado pelos cascos,
chocalho de folhas,
água escorrendo na pedra,
arrulhar da pomba,
cigarra estridente,
entre silvos e dentes.

Não há harmonia de partitura.
Não há tradução escrita.
Não há reprodução teatral.

Há harmonia sem intrusos eruditos.
Há tradução que deixa sem palavras.
Há reprodução fora do cativeiro.

O silêncio da floresta é de enlouquecer.
A loucura do homem é medida em sílabas.
Sílabas erradas e juntas são uma bomba.
O rumor da floresta não pode ser afinado.
A loucura do homem é querer entender.
Lá vem o homem com seu diapasão finito.
Ou uma moto-serra afinada em dó menor.
O rumor da floresta é infinito, por favor.

Ariranha ll


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Fazendo uma pessoa

Nem era a pessoa.
Era o que a pessoa fazia.
Acertava e errava.
Se orgulhava e sentia vergonha.
Pedia desculpa e também ignorava.
E assim, se parecia menos com um passarinho.
Se matava alguém, só se importava se outro alguém descobrisse.
Se amava alguém, só se importava se o outro a amasse também.
E assim, se parecia menos com uma jibóia.
Vivia a vida como ela vinha.
Só acreditava na lei, quando a via escrita.
Tinha dúvidas e respondia perguntas.
Não era amada o tempo todo.
E odiava odiar.
E assim, se parecia demais com uma pessoa.
Pois toda pessoa é possível.
Pois a pessoa ao fazer, acaba fazendo a própria pessoa.
E as pessoas fazem de tudo.
Ainda assim, quando ela morreu, todos se perguntaram o que ela tinha feito para merecer uma morte daquelas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Suassuna


Eu poderia ser pior

Eu nem mesmo comprei aquela arma,
nem atirei no motorista da frente.
Não cuspi em nenhuma cara,
nem mesmo pra fazer sexo diferente.

Hoje, não franzi a testa pra ninguém;
já nasci com a testa descontente.
Acredito em tanta coisa do além,
e às vezes, converso até com gente.

Meus males são todos deste mundo:
apodreço a maçã com o meu dente;
e como larva boto a cabeça pelo furo.
Sou este coração até morrer, latente.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Do meu sonho

Deite-me na tua anca esquerda,
enquanto fecho os olhos para sonhar.
Para sofrer com a tua beleza, basta abri-los.

Enquanto minhas mãos fazem mais que sonhar,
abata-me com a tua anca direita.
Eu não me importo.
Já te conheço do meu sonho.
E pro meu sonho, quero sempre voltar.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pronto para o amor


Música é trabalho

Há tempos está marginalizada a cigarra!
Tão canora no verão,
tão vagabunda o tempo todo!
Aplaudimos as formigas,
porque ao fim do seu trabalho vemos um prédio!

Há tempos foi uma cigarra grega
a substituir uma corda quebrada de cítara...
Será trabalho só aquele que dói?
Não será também aquele que traz prazer?

Existem calos nas mãos do luthier...
Isso é tão físico quanto as cigarras-
operárias de um mundo com ritmo.
E, no final, a música volta ao cosmos;
com o valor mágico da volatilidade.
Aqui, permanecem pequenas as formigas.